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Freaks and Geeks – o cancelamento da série foi justo?
Como é que uma série encabeçada por Paul Feig e Judd Apatow e com Seth Rogen, James Franco e Jason Segel no elenco principal foi cancelada logo na sua primeira temporada?
Escrita por Paul Feig e produzida por Judd Apatow, Freaks and Geeks é a série que todos nós precisávamos de ter visto antes de acabarmos o liceu. Uma representação cómica, honesta, autêntica e muito bem escrita dos infortúnios e devaneios por que todos os adolescentes passam. É uma clara precursora das sitcoms de hoje em dia, tendo quebrado barreiras tanto a nível do formato como nos temas abordados (traição, religião, sexualidade, abuso parental) e, mais importante do que tudo, foi feita com jovens atores a encarnar personagens da mesma idade, contrariamente à norma – ainda hoje em dia é comum vermos atores com 30 anos a representar adolescentes de 16.
Protagonizada por Linda Cardellini e John Francis Daley nos papéis dos irmãos Lindsay e Sam Weir, esta série retrata a vida de jovens adolescentes dos subúrbios americanos nos anos 80. Lindsay, uma filha e aluna exemplar, começa a questionar-se a si própria e ao mundo que a rodeia após assistir à morte da avó. É aqui que entram os “Freaks” da escola – um grupo de rebeldes que desafiam a autoridade, que fumam debaixo das bancadas e que só se metem em trabalhos. Lindsay passa a conviver com a “mean girl” Kim Kelly (Busy Philipps) e Daniel Desario (James Franco), o seu namorado, o aspirante a baterista profissional Nick Andopolis (Jason Segel) e o encantador Ken Miller (Seth Rogen).
Por sua vez, Sam, um rapaz inteligente, mas demasiado inocente para o seu próprio bem, pertence ao grupo dos “Geeks” – jovens que aparentam ser mais sensíveis e invulgares, sendo, portanto, alvos fáceis de bullying pelos colegas da escola – juntamente com Neil Schweiber (Samm Levine) e Bill Haverchuck (Martin Starr), os seus únicos amigos. Ele próprio afirma “I don’t need another friend. I already have two.” num jantar à mesa com a família. Quem nunca.
Onde tudo começou
Uma pequena série de televisão que apenas esteve no ar durante alguns meses acabou por se tornar numa série de culto, adorada por pessoas por todo o mundo. Os seus autores e protagonistas tornaram-se em alguns dos produtores, argumentistas e atores mais bem-sucedidos dos últimos tempos.
Tudo começou com um grupo de amigos, entre os quais, Paul Feig e Judd Apatow, que se costumavam reunir no final de uma noite de stand up, a jogar poker e a sonhar com aquilo que esperavam alcançar, sem certezas se alguma vez lá iriam chegar. Paul Feig queria escrever sobre a sua experiência de liceu, sobre as vidas complexas dos jovens, as dinâmicas entre os vários grupos sociais e também com os seus pais e professores, algo que nunca tinha visto representado na televisão americana. Partiu de uma simples experiência pessoal: quando ainda era um jovem adolescente, Feig queria levar a cheerleader por quem estava perdidamente apaixonado ao baile de finalistas, mas como apenas ganhou coragem para lhe perguntar mesmo em cima do acontecimento, no dia do baile, ela amavelmente o informou que já tinha par. Soa familiar?
Judd Apatow decidiu então apresentar o guião do episódio piloto ao presidente da Dreamworks, com quem tinha previamente feito um acordo de produção e que, por sua vez o conseguiu vender à NBC.
O ingrediente secreto
O que é que The Office, Curb Your Enthusiasm, Arrested Development, Parks and Recreation, The Good Place, Brooklyn Nine-Nine, Borat, Scott Pilgrim vs the World, Booksmart e Lady Bird têm em comum? Duas palavras: Allison Jones. Todos estas séries e filmes de enorme sucesso tiveram Jones como sua Diretora de Casting. Jones, cujo trabalho em Freaks and Geeks lhe valeu um Emmy, dá prioridade a projetos cujo objetivo principal não seja apenas reunir uma mão cheia de “caras bonitas” por ser aquilo que os executivos pensam que irá vender mais, mas sim de indivíduos que contribuam para o projeto com a sua personalidade e que sejam uma fiel representação da sociedade na qual vivemos. Isto é comprovado através do elenco que reuniu em Freaks and Geeks – adolescentes normais e desajeitados, repletos de caráter e peculiaridades.
Com inúmeros cameos de futuras estrelas de Hollywood, como Lizzy Caplan, Ben Foster, Rashida Jones, Shia LaBeouf, Jason Schwartzman e até mesmo do já bem-sucedido Ben Stiller, para além do elenco de luxo já acima mencionado, Freaks and Geeks é das séries que mais estrelas lançou na indústria americana. Uma espécie de Morangos com Açúcar em terras de Uncle Sam.
Como assim, fomos cancelados?!
Apesar de não estarem muito confiantes com o formato, por ser filmado apenas com uma câmara, misturar comédia com drama, o que fugia à norma de então, a NBC decidiu produzir 12 episódios, para além do piloto que já tinha sido filmado. Posteriormente foi definido que a série iria passar no canal aos sábados às 20h da noite. Contrariamente com o que se sucede em Portugal, nos Estados Unidos da América este é o horário primordial para transmitir programas de Desporto, fazendo com que a série passasse a ter uma concorrência à qual não conseguia fazer frente. Estavam destinados a fracassar.
Os episódios ainda estavam a ser filmados já a série era transmitida na televisão. A própria transmissão não era regular. A série podia estar no ar durante duas semanas, ser interrompida durante outras duas semanas, voltar ao ar uma semana, por aí adiante, tendo sido transmitida durante 13 semanas de um total de 26 semanas. Teve tanto tempo no ar como fora do ar. Juntando ao facto de naquela altura os espectadores apenas terem uma oportunidade para ver o episódio e de não ser possível voltar atrás na transmissão, as coisas não estavam a correr como planeado. Com a eminência do cancelamento a pairar no ar, todo este ambiente pesaroso, falta de investimento em publicidade por parte da NBC aliada à pressão dos seus executivos, o foco dos criadores desvanecia em detrimento da sua criatividade. Apesar de inicialmente terem atraído excelentes críticas e de serem adorados pela imprensa, o número de espectadores semanais (cerca de 7 milhões) não refletia os objetivos que a empresa tinha para Freaks and Geeks. Hoje em dia uma produção com estes números seria considerada um enorme sucesso, mas em 1999/2000 era meio caminho andado para sair da programação do canal.
Com mais 5 episódios encomendados, a série muda de horário passando a ser transmitida à segunda-feira, onde encontra ainda mais competição, nomeadamente, o grande tubarão da altura: o concurso “Quem Quer Ser Milionário”. Apesar das inúmeras tentativas para reavivar o interesse dos espectadores, o fim estava eminente. Lindsay iria mesmo ter de se despedir dos seus pais e partir juntamente com Kim Kelly atrás dos Grateful Dead, em busca dos seus sonhos.
No final das contas, apenas foram exibidos 12 dos episódios. Só mais tarde, aquando da sua reposição, é que os 3 restantes episódios viriam a passar na televisão e, pela primeira vez, pela sua ordem cronológica. Em Portugal, Freaks and Geeks ou “A Nova Geração”, assim traduzido para português, seria exibida em 2003 na SIC Radical.
Apesar da curta existência da série, Judd Apatow usou esta experiência como base onde alicerçar todo o seu império no mundo da comédia. Numa espécie de vingança e tentativa de provar aos chefões da NBC que o talento da sua equipa era, de facto, desmedido, Apatow foi chamando colaboradores tanto da equipa técnica como do elenco, para trabalharem com ele em Undeclared, Forgetting Sarah Marshal, Superbad e inúmeros outros projetos que foi produzindo ao longo dos anos.
O tempo passa, mas as memórias ficam
As estórias contadas nestes 18 episódios são maioritariamente sobre a dor de fracassar ao invés da alegria de vencer. Conseguimos ver-lhes uma fina camada de depressão mesmo por debaixo da superfície. A comédia apenas funciona se for de tal forma sustentada na verdade que invariavelmente terá dor. Uma não existe sem a outra. Porque na vida real as coisas que são incrivelmente dolorosas acabam por ser engraçadas ou então não lhes conseguimos sobreviver. Freaks and Geeks fala-nos do fracasso e como sobreviver ao fracasso. É sobre amigos que se apoiam uns nos outros nas fases mais difíceis de um adolescente, sobretudo quando se sentem humilhados e mais frágeis. É uma série que nos mostra que talvez as nossas vidas não são tão más como nós pensamos, que não estamos sozinhos na nossa dor, que outras pessoas à nossa volta também estão a passar pelas mesmas dificuldades. Às vezes a vida não corre como nós queremos, mas Paul Feig e companhia mostram-nos que o importante é tirar o melhor partido daquilo que nos é dado. É uma série sobre sonhos, sobre se temos (ou não) coragem para sonhar, para irmos atrás daquilo que queremos alcançar. Se somos desistentes ou trabalhadores, focados ou desleixados.
O liceu é onde nos tornamos quem somos. São anos duros das nossas vidas. As nossas emoções e as hormonas de adolescente correm no nosso corpo a mil à hora de uma forma como nunca antes tínhamos experienciado. Toda esta fase da adolescência é universal e isso nunca vai mudar, por mais que o ser humano evolua. Mas à medida que vamos crescendo, tal como aconteceu com a Lindsay, vamos começando a ganhar mais confiança em quem nós somos e a decidir quem realmente queremos ser. A viver para nós e não em função dos outros e daquilo que eles querem para nós. É normal, quando somos jovens, achar que ninguém nos compreende, que o mundo está todo contra nós. Que o Coach Fredricks se está a envolver com a nossa mãe só para nos dificultar a vida. Sentimo-nos sozinhos, sem um farol para nos guiar. Achamos que sabemos tudo, que somos os maiores, e a pouco e pouco vamo-nos apercebendo que a nossa existência é apenas uma ínfima gota no oceano que é a humanidade. Que afinal há uma razão por detrás de toda a atitude de “bad girl” da Kim Kelly e da arrogância do Neil. E que os Freaks e os Geeks da vida têm mais semelhanças do que inicialmente pensávamos.
Garth Ancier, antigo executivo da NBC e o responsável pelo cancelamento da série, costumava pedir aos seus autores que escrevessem “mais vitórias” nos episódios, para que a narrativa fosse mais feliz e, consequentemente, que os personagens fossem mais bem-sucedidos nos seus objetivos. Mas talvez a melhor vitória que Freaks and Geeks nos deu foi mostrar que sobreviver aos anos de liceu é possível. Que há uma luz ao fundo do túnel e que os melhores anos das nossas vidas ainda estão para vir.