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“Q: Into the Storm” – Há fronteiras na liberdade de expressão?
O mistério por detrás de QAnon é finalmente revelado. “Q: Into The Storm” está disponível na HBO Portugal.

O mistério por detrás de QAnon é finalmente revelado. Já dizia o velho ditado: zangam-se as comadres, descobrem-se as verdades.

O Capitólio norte-americano em Washington D.C. é invadido por apoiantes de Donald Trump, que protestam contra o resultado das eleições de 3 de novembro.
Para melhor compreendermos as motivações deste incidente precisamos de andar atrás no tempo, mais precisamente, para outubro de 2017. QAnon, um utilizador anónimo do Reddit, uma rede social agregadora de notícias e imagens, começa a ganhar notoriedade no subreddit r/greatawakeining através dos múltiplos posts que vai lançando diariamente. Os restantes usuários da comunidade tentam decifrar as datas e palavras-chave que “Q” (é esta a letra que o anónimo utiliza para assinar todos os seus posts), um suposto “insider” com informação privilegiada, vai deixando e, ao mesmo tempo, assumindo que são pistas de um mistério por resolver, de profecias daquilo que irá acontecer nos próximos anos na atmosfera política dos Estados Unidos da América.
Cullen Hoback, o realizador da série, que já tinha abordado a temática da privacidade e dos direitos dos utilizadores no mundo digital com o seu documentário de 2013, Sujeito a Termos e Condições, entra nesta jornada precisamente quando o Reddit decide banir o subreddit r/greatawakeining, obrigando Q a encontrar uma nova casa: o site 8Chan.
Atraído pela discussão à volta da liberdade de expressão, curioso para descobrir quem era Q e perceber se este merecia ou não ter sido banido, Hoback parte para Manila onde nos apresenta ao criador do, até então, desconhecido site 8Chan, Fredrick Brennan. É também nas Filipinas que conhecemos a dupla pai e filho, Jim e Ron Watkins, os donos do site de Brennan e elementos-chave da narrativa por detrás da mística do QAnon, pois eram os únicos que estavam publicamente em contacto com Q.

Em rota de colisão
Brennan, após vários atos terroristas e de violência revindicados por seguidores de Q, e numa tentativa de limpar o seu nome e deixar de estar associado a um site que se tornou num antro do pior que a humanidade pode conceber, entra em rota de colisão com os Watkins, que se recusam a acabar com o mesmo. Segundo eles, todos os usuários da Internet e, especificamente, do 8Chan, têm o direito à liberdade de expressão, a professar as suas crenças, a debater todo o tipo de temas, por mais racistas, xenófobos, preconceituosos ou chocantes que sejam.
Ao longo dos 6 episódios acompanhamos o realizador neste jogo do gato e do rato, numa viagem que nos leva um pouco por todo o mundo, das Filipinas ao Japão, de Itália a Macau e a África do Sul. O que começou como uma mera investigação independente torna-se numa aventura de alto risco. Hoback deixa de estar apenas atrás das câmaras e passa a ser também ele um participante na narrativa, estabelecendo uma relação próxima, ainda que marcada por alguma desconfiança e incerteza por ambas as partes, com os seus protagonistas, e que lhe dá acesso livre aos principais intervenientes da comunidade QAnon.
São-nos apresentados os dois lados da moeda, uma visão holística da máquina que rodeia Q. Por um lado, temos os seguidores de Q e os chamados QTubers, indivíduos que iniciaram carreiras profissionais no Youtube exclusivamente para descodificarem os seus posts; por outro, os que consideram as teorias da conspiração que dele derivam como algo completamente irrealista e absurdo.

É difícil ficarmos alheios a todo este mistério
Esta é uma série para quem gosta de ir com os amigos a Escape Rooms ou passar um bom serão em família a jogar Cluedo. O espectador, a par com Hoback, começa a tentar ligar as pistas e a formular teorias sobre quem é (ou são) o QAnon. Em quem vamos confiar?. Qual a verdadeira envolvência de membros do Partido Republicano como Roger Stone, Mike Flynn ou Steve Bannon, antigos conselheiros, assessores e estrategas, respetivamente, de Trump? Estarão Jim Watkins, um excêntrico colecionador de canetas e relógios, dono de sites de pornografia e de uma quinta de porcos, e o seu filho Ron, um grande admirador de Julian Assange, e ironicamente viciado em pornografia, a dizer a verdade quando afirmam não conhecer Q? Serão realmente quem dizem ser ou estarão apenas a divertir-se e a encarnar personagens para as câmaras?
Um dos melhores momentos da série ocorre precisamente na sua conclusão. Hoback mostra-nos uma sequência arrepiante de imagens da invasão do Capitólio ao som de “White Rabbit”, dos Jefferson Airplane, com a vocalista Grace Slick a cantar “And if you go chasing rabbits. And you know you’re going to fall”, numa brilhante referência a “Follow The White Rabbit”, outra das teorias da conspiração dos QAnons.
Cullen Hoback partiu à procura de Q, um verdadeiro mestre a criar caos político que, inconscientemente ou não, incita possíveis atos de violência. Mas o que verdadeiramente encontrou foi o seu impacto na sociedade norte-americana: a edificação de uma comunidade que foi manipulada e levada a criar e a acreditar em teorias de conspiração mirabolantes, como a Pizzagate ou a teoria de que o mundo é governado por pedófilos que veneram Satanás. Uma comunidade cujos indivíduos se tornaram meros peões num puzzle mental e político, criado por alguém que trata o mundo precisamente como se fosse um jogo.
“Q: Into The Storm” está disponível na HBO Portugal. Nós não vamos perder e tu?
